sábado, 30 de janeiro de 2010

O fotografo

Manoel de Barros

Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada a minha aldeia estava morta.
Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas.
Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim num beiral de um sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada mais na existência do que na pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotogafei o perdão.
Vi um paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre.
Por fim cheguei a Nuvem de calça.
Representou pra mim que ela andava na aldeia de braços com Maiakovski - seu criador.
Fotografei a Nuvem de calça e o poeta.
Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa mais justa para cobrir sua noiva.
A foto saiu legal.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Irrecuperável




“Há aqueles que nascem com defeito. Eu nasci por defeito. Explico: no meu parto não me extraíram todo, por inteiro. Parte de mim ficou lá, grudada nas entranhas de minha mãe. Tanto isso aconteceu que ela não me alcançava ver: olhava e não me enxergava. Essa parte de mim que estava nela me roubava de sua visão. Ela não se conformava.


- Sou cega de si, mas hei de encontrar modos de lhe ver!


A vida e assim: peixe vivo, mas que só vive no correr da água. Quem quer prender esse peixe tem que o matar. Só assim o possui em mão. Falo do tempo, falo da água. Os filhos se parecem com água andante, o irrecuperável curso do tempo. Um rio tem data de nascimento? Em que dia exacto nos nascem os filhos?”


Mia Couto, O ultimo vôo do flamingo

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Montevideu


Na galeria, cada clarão
É como um dia depois de outro dia
Abrindo o salão
Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão
(As vitrines, Chico Buarque)



... Logo viu-se em terreno desconhecido, viu sombras de uma repetição assomando-se pelas cortinas assim que Elisa fechou contundentemente a porta por detrás de si. O silencio guardava ainda o eco de suas palavras e era o eco próprio do seu silencio. Foi preparar as malas, no dia seguinte partiria rumo a Montevidéu, em uma sutil afronta, deturpar o ano novo a dois que haviam combinado em uma viagem solitária e introspectiva, que queria sustentar certo orgulho de desapego, firmar uma vontade de mundo e de outras pessoas, de outros sotaques.
No dia seguinte partiria, com uma poltrona vazia ao seu lado.

(...)

Agora já caminhava sobre o sol escaldante do sul, visitando lugares inóspitos, com a câmera na mão, fotografando fugacidades de meias palavras, de imensidões, de olhares semipreciosos. Caminhava como quem busca sua própria trilha, como quem espera captar algum pensamento perdido em meio a leve brisa de verão, ou algumas densas frases em um café esfumaçado. Beirava o mar, por entre os enormes edifícios da área nobre, arida e vazia. De Elisa, lembrava das ultimas situações em que haviam estado juntos, porem sem palavras, apenas uma intensidade a qual não podia nomear. Estava la para esquecê-la e a mudança de ares já fazia efeito, sentia-se confiante novamente, como se nunca a tivesse conhecido.
Virando uma esquina, arvores e casinhas baixas, uma galeria de arte lhe chamou a atenção. O cartaz em frente apresentava uma exposição de seu colega fotografo, com o qual havia trabalhado tantos anos, a coincidência o alegrou subitamente. Entrou e passou a percorrer as paredes, recolhendo antigas memórias, de cheiros e tatos que conhecia naquelas fotos. Reconheceu texturas cujo autor poderia identificar em qualquer fotografia, mesmo nesta situação tão inusitada.
Uma estranha sensação de familiaridade lhe ocorreu, a tantos quilômetros de distancia, e pensava em como as imagens podem meter-se tão sorrateiramente nas entrelinhas das sensações, quando de repente parou. Teve que se aproximar para confirmar que via aquela foto tão antiga, tão desassossegante. Via Elisa deitada em seu colo, numa noite qualquer de verão, ambos iluminados por uma luz fraca vindo de algum lugar por detrás de um lençol que esvoaçava sobre suas cabeças. Estarrecido, foi invadido por lembranças dessa tranqüilidade, dessa quietude de estarem juntos, cheiros que combinavam e atraiam-se um ao outro, manhãs quentes de verão, noites chuvosas de uma felicidade calma. Pareceu-lhe absurdo que aquilo se apresentasse ali, daquela forma: percorrera 1.500 kilometros justamente para afastar-se daquela tranqüilidade, daquela insuportável leveza.

(...)

Sentado no café da galeria tentava recombinar sensações, estancar a profusão de confusões que se apresentava, o café amargo aplacava e dava certa dramaticidade a situação. Em um relance, viu uma menina, de 20 e poucos anos, que lia compenetrada na mesa ao lado. Levava um vestido vermelho, solto ao corpo e fumava um cigarro mentolado, cuja fumaça empestiava o ar. De súbito, num momento em que suas memórias pareciam fundir-se e quase podia reconhecer o cheiro doce de Elisa no ar, levantou-se e, rapidamente, foi sentar-se na mesa da jovem ao lado, sem ao menos pensar em algo para lhe dizer...

domingo, 3 de janeiro de 2010

Se numa noite fantástica

Já havia a premissa. Barcelona, a terra das ilusões, reconhecida como tal, refrescava seu asfalto do calor escaldante dos pés estrangeiros daquela estação. O vento dos finais de tarde arrepiavam corpos em frisson de experimentos subcutâneos e subconscientes, semidestilados em álcool, pastilhas, risos demorados e olhares oblíquos. Éramos três e esperávamos alguma oportunidade de liquefazernos em mais, em asfalto, em praça, em céu, em muitos. Uma pretensa despretensão dava inicio a uma longa caminhada, guiada pela leveza intensa de cada esquina e de cada fração de quases. Ali, escorregávamos pela noite silenciosa de Barcelona, como em uma fina sintonia da busca pelo contentamento. Busca pelo nunca, pelo nada.busca por uma busca entre três, entre mais e não só de um. Cadeia de acontecimentos ritmados, postos um a um, fugindo de fantasias de perigo rumo a fantasias de dissolução numa noite interminável, contínua e fantástica. Escorregávamos como quem não se detem para uma resposta desconfortável, como quem não espera o constrangimento da queda e nem o naufrágio de um olhar apaixonado. De um lugar a outro, fios de acontecimentos se teciam e se remetiam a um tempo ilusório, de fugacidades esfumaçadas em cada cigarro. O sol já despontava quando vimos um olhar de despedida, silencioso, que dizia que naquele momento não suportava voltar a claridade das coisas, e tinha que esconder-se enquanto ainda fosse tempo.

Dor Elegante

(Itamar Assumpção e Paulo Leminski)

Um homem com uma dor
É muito mais elegante
Caminha assim de lado
Com se chegando atrasado
Chegasse mais adiante

Carrega o peso da dor
Como se portasse medalhas
Uma coroa, um milhão de dólares
Ou coisa que os valha

Ópios, edens, analgésicos
Não me toquem nesse dor
Ela é tudo o que me sobra
Sofrer vai ser a minha última obra